segunda-feira, 17 de outubro de 2016

ANJO MELEIRO

Por Clarkson Ramos Moura*

             Os Gararuenses, natos ou afetivos, que temos 40 anos, ou mais, de idade e convivência, e que constituímos parcela expressiva do atual Povo de nossa Cidade e de nosso Município -- Gararu -- lembramo-nos de um saudoso e real personagem, "Anjo Meleiro": brasileiro, descendente de escravos, de naturalidade incerta (dizia-se de Propriá), sem lenço e sem documento, analfabeto, católico, corpulento, alto, cego d'olho direito, cabelo encarapinhado e grisalho, vestido de roupa surrada e encardida, pés descalços, comunicativo, inofensivo, vulgo "Meleiro". Segundo declarações próprias, teria alcançado o estado de escravidão de seus pais. Era a servil reprodução fisionômica do imortal poeta português, Luís Vaz de Camões, autor de obras-primas das Literaturas Portuguesa e Mundial, entre elas, "Os Lusíadas".
          Essa criatura singular, embora miserável materialmente, demonstrava, de forma natural, ser rico espiritualmente, pois vivia de bem com a vida. Seu rosto estampava pura felicidade. Sempre bem-humorado, trocava cumprimentos e gracejos com quem cruzasse com ele nas suas andanças e com quem estivesse postado de cada lado, ao longo de seu caminho. Ele só não admitia, em hipótese alguma, chamá-lo de "Meleiro" acintosamente. Se algum engraçadinho, fosse quem fosse (do Prefeito, passando pelo Juiz, Promotor e Delegado, até o mais simples indivíduo da Comunidade) se atrevesse a fazê-lo pelas costas ou de sorrate; "Anjo", de pronto, em alto e bom som, lhe responderia com o conhecido bordão: "SUA MÃE TEM (...) UM CARRO DE BOI, BEM NO CU!".
            Em sendo "gararuense de coração", o emblemático e lendário "Anjo Meleiro", jamais, poderá sair da grata memória de tantos quantos o conheceram pessoalmente, sobretudo, das gratas e comoventes recordações infanto-juvenis dos conterrâneos da minha e das contíguas gerações. A esta altura, o ocasional leitor deste modesto texto poder-me-á questionar sobre a razão por que eu ousei fazer essa enfática assertiva. Sem hesitação, justificar-lhe-ei assim: não porque, na sua ingenuidade e destemor, o relembrado extinto, uma vez provocado, tenha reagido sempre, despertando hilaridade; senão pelo inequívoco amor a Gararu, que, ao longo de sua penosa vida, comprovara. Tanto que -- acredito -- é provável que, enquanto viveu, ele não haja perdido uma só edição da "Festa do Santo Cruzeiro".
        Seja dito, de oportuno, para não pairar dúvida nesse sentido, que tal figura do valioso Folclore gararuense, por todo o tempo, foi hóspede certo de minha inesquecível Mãe. Conquanto nossa casa fosse pequena e nossa Família, então, de classe baixa, com oito membros, ao nosso amigo "Anjo", jamais lhe foram negados um prato de comida, um copo d'água e um digno aposento para descansar.
          Pelo que lhes expus e deixei de fazer, não de propósito, mas por lapso de minha desgastada memória, resolvi por bem resgatar, em parte, o teor de interessante página da tradição oral de nossa Terra, não registrada nos seus Anais, todavia retida no meu arquivo vivo: reminiscência de "Anjo Meleiro", a fim de que os Gararuenses, contemporâneos e posteriores, respectivamente, revivamos e conheçam segmento da História inoficial do atual Gararu, primitivo "Curral de Pedra".

Tinha a cara de Camões,
Adorava o mel cabaú;
Se lhe chamassem Meleiro,
Dizia: "Sua Mãe tem um
Carro de boi bem no cu!"


*Clarkson Ramos Moura. É filho de Gararu, Funcionário da SEFAZ-SE, Advogado, Engenheiro Civil e Químico.  

Um comentário:

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